5 de out. de 2011

tão perto , tão longe

Meu programa predileto


Do sofá, assistindo um programa idiota na tv, eu noto a porta entreaberta do banheiro. Lá está ela, no boxe, tomando seu banho com sabor de laranja. Sempre adorei aquele perfume cítrico louco, que me deixava alucinado nas montanhas quando o senti pela primeira vez. Estávamos numa cabana, o céu escuro do dia não convidava a nada, o frio suado da tarde, e um vento com cheiro de grama queimada, misturado com leite ou queijo, zunia na porta e balançava um pouco as madeiras rachadas. Na cama, ela dormia cansada de uma viagem de horas, de conversas demoradas durante toda a manhã com doentes mentais que dirigiam empresas, e eu ali, lendo um pouco de Neruda, livro dela, não meu, mas eu lia tudo dela, ouvia suas músicas e tudo mais. Ela acorda mas nunca abre os olhos, apenas me puxa para perto daquele corpo macio, e pede para beijá-la ronronando e fazendo manha. Eu a beijo, mas o beijo me remete a outro, e a toco, a desejo loucamente, e a beijo o corpo todo. E ali, naquela cama estridente, com madeiras rangendo por todos os lados, e a lareira apagada, mas cheirando carvão, transamos até o manto negro da noite cobrir toda montanha.
Ela vai ao chuveiro, nessa hora que senti pela primeira vez o doce perfume da laranja silvestre, oriundo de um frasco com a cor da fruta, ela se banha e se perfuma com ele. Me enlouqueci. Transamos no chuveiro com laranja em minhas narinas, e o cheiro de sangue ferroso em nossos poros explosivos. Depois comemos pelas ruas vazias da cidade quase fantasma, andamos sem destino e sem nada, apenas embalados pelo vinho e pela vontade de andar lado a lado, pouco falamos, apenas andamos, ora de mãos dadas, ora abraçados, ora quase pelados no frio intenso, pelados em nossas paixões bêbadas. E agora, um ano depois, não consigo prestar atenção nesta tv, nunca presto, nunca presta mesmo nada que vem desta porcaria eletrônica. Mas ao meu lado, quase tão perto que daria para tocá-la, ela dança sem notar no seu banho de iara, a água parece cantar para ela ao escorrer e massagear seu corpo de fruta, e eu me inclino mais ainda para sentir toda aquela magia louca, para absorver aquele momento sagrado e puro, o banho cítrico da criatura mais linda da terra. Ela se acaricia com o perfume celestial de laranja. A tv me chama, o apresentador implora minha atenção, coloca mulheres nuas, passa um filme com orgias, mostra um louco comendo carne humana, mas não consigo mais pensar em outra coisa senão naquela linda cena do boxe do banheiro. Sonhei com aquilo depois, e por muitas outras vezes. No fim, ela me chamou, me pediu a toalha. Ela sempre me pedia a toalha branca, que sempre estava no varal. E eu sempre procurava no lugar errado, só para ele ficar um tempo a mais naquele lindo altar do banheiro, meu melhor programa noturno. 


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Vem uma pessoa, vem de longe, a gente a vê, mira seus olhos, se encanta. De alguma forma alguém a trouxe, ali está ela bem na sua frente. O tempo passa, você a observa. Que pena que és bela. Poderia ser simplesmente comum. É tão perfeita pra ti, seus olhos, seu caminhar, seus sonhos. Mas tem um defeito, é bela. Fosse ela mais simplesmente normal. Poderia ser um pouco mais gordinha, talvez coxa de perna. Mas, de propósito, és bela, brilha com seus cabelos e olhares, com seu jeito insinuante. Mas não é seu corpo que ele vê. É seu jeito de mulher, sua voz aveludada, suas ambições naturais, e sua natureza tão pura. Seu jeito meio selvagem, sua coragem e espírito guerreiro, e o coração do bem, com um sabor de amor e cravo. Eis que ela assim te olha, vocês caminham juntos por tantas calçadas e parques. Brincam, conversam e viajam. Nasceu um conto, um poema, nascem algumas palavras jogadas na tela. Você vai com ela ver as estrelas, a tira da chuva, cobre suas costas frias, massageia sua canseira e ombro ferido. Você a carrega no colo nos dias ruins, defende sua moral com unhas e dentes, e a protege do todo mal presente. Sim, pensa consigo, é ela, é ela que eu tanto esperava. Oh, Deus, mas tinha que ser ela assim tão bela? Por ser bela, sempre a ela, outros olhos miram e desejam, tantas palavras vêm do nada, elogios e tantas paqueras. Não podia ser ela simplesmente comum? E se ela chora, você recolhe aquelas lágrimas, as guarda com carinho. Canta pra ela na areia, diz que a ama um dia. E ela, de tão bela e amada, desejada e querida, resolveu em outro dia também te dizer "te amo". Ah, a magia, tão esperada magia, explode em seu coração cedente e você perde um pouco o equilíbrio. Mas o mundo tem lá seus caprichos, e nem tudo é bonança, há as tempestades e os terremotos, há as guerras e os espinhos. Por mais amor que tenhas no peito, os infortúnios estão aí, atrás do muro. E na correnteza eu a segurei, no incêndio a protegi, quando ela caiu eu a levantei e quando não pôde andar eu a carreguei. Mas também tive meus maus dias, também espirrei e me gripei, também cai e escorreguei, e então ela se foi.




por Mauro Cass







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